No centro de formoso jardim, havia grade lago, adornado de
ladrilhos azul-turquesa.
Alimentado
por diminuto canal de pedra, escoava suas águas, do outro lado, através de
grade muito estreita.
Nesse
reduto acolhedor, vivia toda uma comunidade de peixes, a se refestelarem,
nédios e satisfeitos, em complicadas locas1 (1Local sob
uma laje que serve de toca para peixes), frescas e sombrias. Elegeram um dos
concidadãos de barbatanas para os encargos de rei, e ali viviam plenamente
despreocupados, entre a gula e a preguiça.
Junto
deles, porém, havia um peixinho vermelho, menosprezado de todos.
Não
conseguia pescar a mais leve larva, nem refugiar-se nos nichos barrentos.
Os
outros, vorazes e gordalhudos, arrebatavam para si todas as formas larvárias e
ocupavam, displicentes, todos os lugares consagrados ao descanso.
O
peixinho vermelho que nadasse e sofresse. Por isso mesmo era visto, em correria
constante, perseguido pela canícula2 (2calor muito forte) ou atormentado
de fome.
Não encontrando pouso no vastíssimo domicílio,
o pobrezinho não dispunha de tempo para muito lazer e começou a estudar com
bastante interesse.
Fez o
inventário de todos os ladrilhos que enfeitavam as bordas do poço, arrolou
todos os buracos nele existentes e sabia, com precisão, onde se reuniria maior
massa de lama por ocasião de aguaceiros.
Depois
de muito tempo, à custa de longas perquirições, encontrou a grade do
escoadouro.
À frente da imprevista oportunidade de
aventura benéfica, refletiu consigo: “Não será melhor pesquisar a vida e conhecer
outros rumos?”
Optou
pela mudança.
Apesar
de macérrimo pela abstenção completa de qualquer conforto, perdeu várias
escamas, com grande sofrimento, a fim de atravessar a passagem estreitíssima.
Pronunciando
votos renovadores, avançou, otimista, pelo rego d’água, encantado com as novas
paisagens, ricas de flores e sol que o defrontavam, e seguiu, embriagado de
esperança...
Em
breve, alcançou grande rio e fez inúmeros conhecimentos.
Encontrou
peixes de muitas famílias diferentes, que com ele simpatizaram, instruindo-o
quanto aos percalços da marcha e descortinando-lhe mais fácil roteiro.
Embevecido,
contemplou nas margens homens e animais, embarcações e pontes, palácios e
veículos, cabanas e arvoredo.
Habituado
com o pouco, vivia com extrema simplicidade, jamais perdendo a leveza e a
agilidade naturais.
Conseguiu,
desse modo, atingir o oceano, ébrio de novidade e sedento de estudo.
De
início, porém, fascinado pela paixão de observar, aproximou-se de uma baleia
para quem toda a água do lago em que vivera não seria mais que diminuta ração;
impressionado com o espetáculo, abeirou-se dela mais que deveria e foi tragado
com os elementos que lhe constituíam a primeira refeição diária.
Em
apuros, o peixinho aflito orou ao Deus dos peixes, rogando proteção no bojo do
monstro e, não obstante as trevas em que pedia salvamento, sua prece foi
ouvida, porque o valente cetáceo começou a soluçar e vomitou, restituindo-o às
correntes marinhas.
O
pequeno viajante, agradecido e feliz, procurou companhias simpáticas e aprendeu
a evitar os perigos e tentações.
Plenamente
transformado em suas concepções do mundo, passou a reparar as infinitas
riquezas da vida. Encontrou plantas luminosas, animais estranhos, estrelas
móveis e flores diferentes no seio das águas. Sobretudo, descobriu a existência
de muitos peixinhos, estudiosos e delegados tanto quanto ele, junto dos quais
se sentia maravilhosamente feliz.
Vivia,
agora, sorridente e calmo, no Palácio de Coral que elegera, com
centenas de
amigos, para residência ditosa, quando, ao se referir ao seu começo laborioso,
veio a saber que somente no mar as criaturas aquáticas dispunham de mais sólida
garantia, uma vez que, quando o estio se fizesse mais arrasador, as águas de
outra altitude continuariam a correr para o oceano.
O
peixinho pensou, pensou... e sentindo imensa compaixão daqueles com quem
convivera na infância, deliberou consagra-se à obra do progresso e salvação
deles.
Não
seria justo regressar e anunciar-lhes a verdade? Não seria nobre ampará-los,
prestando-lhes a tempo valiosas informações?
Não
hesitou.
Fortalecido pela generosidade de irmãos
benfeitores que com ele viviam no Palácio de Coral, empreendeu comprida viagem
de volta.
Tornou
ao rio, do rio dirigiu-se aos regatos e dos regatos se encaminhou para os
canaizinhos que o conduziram ao primitivo lar.
Esbelto
e satisfeito como sempre, pela vida de estudo e serviço a que se devotava,
varou a grade e procurou, ansiosamente, os velhos companheiros.
Estimulado
pela proeza de amor que efetuava, supôs que o seu regresso causasse surpresa e
entusiasmos gerais. Certo, a coletividade inteira lhe celebraria o feito, mas
depressa verificou que ninguém se mexia.
Todos
os peixes continuavam pesados e ociosos, repimpados nos mesmos ninhos
lodacentos, protegidos por flores de lótus, de onde saíam apenas para disputar
larvas, moscas ou minhocas desprezíveis.
Gritou
que voltara a casa, mas não houve quem lhe prestasse atenção, porquanto
ninguém, ali, dera pela ausência dele.
Ridiculizado,
procurou, então, o rei de guelras enormes e comunicou-lhes a reveladora
aventura.
O
soberano, algo entorpecido pela mania de grandeza, reuniu o povo e permitiu que
o mensageiro se explicasse.
O
benfeitor desprezado, valendo-se do ensejo, esclareceu, com ênfase, que havia
outro mundo líquido, glorioso e sem-fim. Aquele poço era uma insignificância
que podia desaparecer de momento para outro. Além do escoadouro próximo
desdobravam-se outra vida e outra experiência. Lá fora, corriam regatos ornados
de flores, rios caudalosos repletos de seres diferentes e, por fim, o mar, onde
a vida aparece cada vez mais rica e mais surpreendente. Descreveu o serviço de
tainhas e salmões, de trutas e esqualos. Deu notícias do peixe-lua, do
peixe-coelho e do galo-do-mar. Contou que vira o céu repleto de astros sublimes
e que descobrira árvores gigantescas, barcos imensos, cidades praieiras,
monstros temíveis, jardins submersos, estrelas do oceano e ofereceu-se para
conduzi-los ao Palácio de Coral, onde viveriam todos, prósperos e tranquilos.
Finalmente os informou de que semelhante felicidade, porém, tinha igualmente
seu preço. Deveriam todos emagrecer convenientemente, abstendo-se de devorar
tanta larva e tanto verme nas locas escuras e aprendendo a trabalhar e estudar
tanto quanto era necessário à venturosa jornada.
Assim
que terminou, gargalhadas estridentes coroaram-lhe a preleção.
Ninguém
acreditou nele.
Alguns
oradores tomaram a palavra e afirmaram solenes, que o peixinho vermelho
delirava, que outra vida além do poço era francamente impossível, que aquela
história de riachos, rios e oceanos era mera fantasia de cérebro demente e
alguns chegaram a declarar que falavam em nome do Deus dos peixes, que trazia
os olhos voltados para eles unicamente.
O
soberano da comunidade, para melhor ironizar o peixinho, dirigiu-se em
companhia dele até a grade de escoamento e, tentando, de longe, a travessia,
exclamou borbulhante:
- Não
vês que não cabe aqui nem uma si de minhas barbatanas? Grande tolo! Vai-te
daqui! Não nos perturbes o bem-estar... Nosso lago é o centro do universo...
Ninguém possui vida igual à nossa! ...
Expulso
a golpes de sarcasmo, o peixinho realizou a viagem de retorno e instalou-se, em
definitivo, no Palácio de Coral, aguardando o tempo.
Depois
de alguns anos, apareceu pavorosa e devastadora seca.
As
águas desceram de nível. E o poço onde viviam os peixes pachorrentos e vaidosos
esvaziou-se, compelindo a comunidade inteira a perecer, atolada na lama...
***
Esta
lenda narrada está na mensagem inicial escrita pelo Espírito Emmanuel, no livro
Libertação, psicografado por Chico Xavier, pelo Espírito André Luiz. O Espírito
Emmanuel ao final da narrativa desta lenda egípcia fala sobre o esforço que o
Espírito André Luiz fez para mostrar a nós encarnados os outros caminhos que
ele percorreu no plano espiritual, nos seus livros para nos informar de outros
mundos e modo de viver, assim como de outras paisagens e horizontes... O
Espírito Emmanuel encerrou a sua mensagem de abertura do Livro Libertação explicando sobre a lenda egípcia do peixinho vermelho,
concluindo da seguinte forma para nos elucidar melhor:
O esforço de André Luiz,
buscando acender luz nas trevas, é semelhante à missão do peixinho vermelho.
Encantado com as descobertas do
caminho infinito, realizadas depois de muitos conflitos no sofrimento, volve
aos recôncavos da crosta terrestre, anunciando aos antigos companheiros que,
além dos cubículos em quem se movimentam, resplandece outra vida, mais intensa
e mais bela, exigindo, porém, acurado aprimoramento individual para a travessia
da estreita passagem de acesso ás claridades da sublimação.
Fala, informa, prepara,
esclarece...
Há, contudo, muitos peixes
humanos que sorriem e passam, entre a mordacidade e a indiferença, procurando
locas passageiras ou pleiteando larvas temporárias.
Esperam um paraíso gratuito com
milagrosos deslumbramentos depois da morte do corpo.
Mas, sem André Luiz e sem nós,
humildes servidores de boa vontade, para todos os caminheiros da vida humana
pronunciou o Pastor Divino as indeléveis palavras: “A cada um será dado de
acordo com as suas obras.” – Emmanuel. Pedro Leopoldo (MG), 22 de fevereiro de
1949.